A luz que emanava do meio das nuvens parecia cegar como pimenta ardida. Obrigou-se a abrir os olhos. A vastidão de verde que se desenrolava a sua frente era assustadora, mas a harmonia do lugar era tão grande que um indício de calma abrigou-se em seu coração. Deslizou a mão direita pelo corpo até o bolso oculto da calça de lã. Sentir as três pedras ainda em segurança foi mais do que teria esperado em seus melhores dias. Permitiu-se um tênue sorriso.
Disse a si mesmo que não devia temer. Era um cavaleiro afinal, ou tão perto disso que não importava. Nunca teve medo de se ferir, da dor ou do sofrimento. Nunca teve, sequer, medo da morte. Antes, acordar sozinho no ponto mais alto de uma montanha não teria acelerado os seus batimentos, mas carregando aquelas pedras...
Martin puxou-as para fora. Eram rubras como sangue coalhado e podia sentir o calor que emitiam. Só estão aquecidas pelo meu corpo. É só isso. Mas em algum lugar no seu subconsciente ele sabia do poder que os objetos possuíam se estivessem completos.
Só então percebeu que tinha fome. E sede, muita sede. Não chovia há dias nos Vales e os riachos que ainda restavam espalhavam-se em muitas léguas uns dos outros. Guardou os preciosos tesouros no mesmo lugar e deu um solavanco no corpo para pôr-se em pé. O esforço causou-lhe tonturas. Sentia a língua grossa e seca. Quando lutava para inspirar a brisa fresca da manhã, a garganta arranhava como se tivesse engolido um gato e o animal quisesse fugir pelo mesmo lugar que entrara. Podia sentir suas garras afiadas dissipando a carne tenra por dentro do pescoço.
– Todas as pedras são traiçoeiras, Martin. – O velho tinha lhe dito – Hoje você está sobre elas, mas amanhã elas estarão sobre você.
Podia ouvir sua voz rouca e falhada repetindo as mesmas palavras. Naquela época, não tinha levado o discurso em tão intensa consideração. Que mal poderia lhe ocorrer? No fundo não acreditava que pudesse haver magia dentro de um pedaço de rocha qualquer. Não acreditava que pudesse haver magia em lugar nenhum, a bem da verdade. Mas tudo o que vira até ali... Conforta-me saber que, a essa altura, as pedras já estão sobre você, velho, enquanto eu continuo sobre elas.
Decidiu que precisava descer até o fundo do vale e arranjar qualquer coisa para forrar o estômago, mas antes do terceiro passo o mundo já rodopiava ao seu redor e com um assombro ele percebeu que estava mais fraco do que podia supor. Sentia o gosto amargo da bílis e soube que nem o melhor café da manhã duraria muito tempo na barriga. Então deixou-se cair. Sabia que ficar ali, no meio do nada, significaria sua morte. Ouviu dizer que um homem podia aguentar um tempo considerável com fome, mas não muito com sede. De qualquer forma, havia animais selvagens naquele campo, sem sombra de dúvidas. Podia acabar logo servindo de almoço para uma família de leões ou mesmo sentir o veneno de uma víbora penetrando lenta e mortalmente na corrente sanguínea. No entanto, o que mais temia eram as pedras. Ou por elas, não saberia dizer.
O vento fresco da manhã acariciou sua nuca e causou-lhe arrepios. Era um dia de outono. O intenso verde que se espalhava a sua frente, os pinheiros que se instalavam nos pontos mais altos, tudo parecia tão indiferente à aproximação do inverno que sentiu dó. Tão ingênuos quanto eu. Não muito tempo antes, ele era um rapaz tão verde como as gramíneas que agora roçavam a palma das suas mãos. Mas o inverno da sua vida chegou num rompante e o garoto percebeu que tinha de crescer.
De repente, sentia-se fraco até mesmo para respirar. Suas pálpebras pesavam toneladas, mas o corpo parecia-lhe tão leve que até mesmo aquela brisa matinal poderia varrer como se fosse uma folha seca. Martin escorregou para dentro de si e sonhou. Sonhou com lanças e pelejas disputadas há muito tempo. Sonhou com uma mulher de longos cabelos castanho-claros e olhos de um profundo tom de azul que ele não soube se teria algum dia conhecido. Sonhou com aqueles que tinham sido seus amigos em um passado muito, muito distante. E num rompante todas as imagens estavam vermelhas, como se estivesse olhando através de uma enorme chama. Ouvia vozes ao longe, gritos estridentes que arrepiaram sua nuca. Então, um som se sobressaiu aos demais. O barulho de uma lâmina, de aço vivo e nu, rasgando o ar tão suavemente quanto um beijo. Vá. Vá ou morra. Aqui não é seu lugar. Não é. Ele se viu transformado num garoto novamente. Sujo, despenteado e, acima de tudo, perdido. Queria fugir, correr, escapar, mas suas pernas pesavam quando tentava movê-las e logo o chão veio ao seu encontro. Então todas as cores desapareceram e em algum canto da escuridão a voz soou retumbante:Todas as pedras são traiçoeiras, Martin.
A água gelada invadiu seu corpo em segundos. A princípio pensou que tivessem lhe dado um banho frio para que acordasse. Um senhor qualquer que estivesse incomodado com um menino maltrapilho em suas ruas. Mas Martin não era mais um menino. O desespero chegou num apelo surdo e subitamente o rapaz percebeu que se afogava. Era real demais para ser um pesadelo. Não havia água nos Vales, como teria sido possível? Martin esperneou, se debateu debilmente na água azul-esverdeada do lago. As mãos tateando por qualquer apoio, os pés implorando um chão que não existia.
O resto foi rápido demais para temer. Ao abrir a boca para pedir socorro, a água tomou-lhe nos braços. Um arrepio gélido na espinha e ele soube que acabaria logo. Parou de lutar. Não seria uma morte gloriosa, talvez nem mesmo honrada, mas até que lhe pareceu digna. Sem sangue. Sem vermelho. Só o azul que se estende à minha frente. Uma tênue e doce canção de ninar chegou aos seus ouvidos e ele pôde sentir, pela última vez, a textura do colo da mãe e o perfume de rosas que seus fios dourados exalavam. Não tentou traçar sua história até ali. A vida tinha sido uma vã passagem. Mergulhado e, finalmente, mais água do que carne deslizou a mão até o bolso. As pedras não estavam lá. Todas as pedras são traiçoeiras, Martin. Hoje você está sobre elas, mas amanhã elas estarão sobre você.Esforçou-se para sorrir. Estava enganado, velho. Só havia água sobre ele e sua jornada havia chegado ao fim.